segunda-feira, 3 de novembro de 2014

De(s)cente

A gente come enquanto espera o almoço ficar pronto. Faz esquenta pra encher a cara durante a festa e, se possível, no final dela também. Fuma cigarro já que a maconha acabou. Vive almejando sempre chegar mais perto da morte e da dor. A gente não come pelo prazer, pra sobreviver e pelo apreço que é a sobrevivência através do prazer. É pra fazer lotar até a barriga doer, enfatizar o arroto, ter azia e mal estar, pra mal poder se locomover quando levantar. A gente não bebe pra se divertir, pra compartilhar o hábito vulgar. A gente bebe até desmaiar, pra vomitar, cair e mal poder se levantar. A gente não fuma pra relaxar. A gente fuma até perder a consciência, qualquer coisa, de qualquer procedência, desde que sirva pra fugir do que não podemos fugir. Nem daqui, nem de nós mesmos. Até não poder se locomover, até o cérebro deixar de raciocinar, o pulmão apodrecer, o estômago se dissolver em tudo que não se alimenta por não parar de comer e até a bebida, de forma sutil ou visceral, se transformar em você. A gente quer fugir pra não perder essa coisa dentro da gente, esse vazio, essa ausência. Esse infinito muito mal escondido que só é preenchido pela essência.

sábado, 26 de julho de 2014

Cinema

Hoje está um pouco menos frio do que o normal e me sinto um pouco mais frio do que normalmente me sinto. Embora o calor permaneça o mesmo aqui dentro, me sinto meio desajustado. Parece que não me caibo. Que não me cabe. Parece que sou pequeno demais ao que estou disposto a consumir, embora isso às vezes me consuma mais do que qualquer outra coisa. Querer consumir consome mais o meu tempo do que o que consumo. Ando vendo menos filmes do que costumava ver. Isso me angustia e me tira do sério às vezes, pois cobro de mim consumir esse tipo de coisa. Não digo arte, porque é informação e há certa cobrança no que faço para manter-me fluente. Antes de qualquer coisa, cinema me traz uma informação singular, que é só sua e que só pertence à sua beleza em demonstrá-la da forma mais sutil possível. Quanto mais sutil for o filme, mais cabível ele está à arte. Quanto menos respostas, quanto menos cobranças, mais cinematográfica é a informação. Cinema é a falsidade na sua forma mais verdadeira; é aquilo que se contempla e se observa de forma sublime e analítica, indo muito além da tevê, embora sabemos que é apenas um esboço do que se vive, ou uma sátira do que se vê. Um rabisco. Sabemos que é mentira, entramos numa sala escura porque buscamos contemplar a farsa imaterial de uma verdade projetada. Sabemos que aquilo pode ser suposição, pode ser a opinião de uma pessoa que nem existe: um personagem. Não temos convicção se é aquilo que o cineasta pensa ou quer transmitir ou se é uma crítica, uma sátira ou uma provocação. Provocação. Eis a primordial função de um cineasta: provocar. Provocar na falsidade da encenação para que dela saia o máximo de sua verdade e de tudo aquilo que possa brotar dela. O que vemos no cinema é imagem, o que é preciso estar em pauta, estar em torno da informação e da provocação é e sempre será a imagem e a força que ela traz para todo o resto. O roteiro não pode ser senão uma moldura da imagética que só se torna possível pela admiração da imagem e toda a desenvoltura do seu movimento poético. Cobro de mim consumir tipos específicos de informação, deixando em segundo plano a retórica entre transbordar arte ou o pouco que se faz em prol da sua existência. Mas não importa se o filme é um clássico do cinema sueco ou se é um que acabou de sair em cartaz no cinema do shopping de uma sala só. Ver filmes constantemente consegue suprir uma necessidade que coluna de página ou livro algum consegue suprir: contemplar a imagem pensada e buscar sua profundidade nos mínimos detalhes, mesmo que imperceptíveis. Analisar a sua estética trabalhada pela sensibilidade do movimento e buscar a delicadeza destruidora que não se constrói nas palavras. A questão do cinema e a sua importância na minha vida pode ser imperceptível até mesmo aos meus sentidos, inconscientemente falando. Porém, fico abismado com a sua plenitude quando se envolve em expandir a sensibilidade no ser humano. Certamente, em livros e em outros meios de informação intelectual ou que se assemelha ao propósito do intelecto de manter a análise crítica e o senso de observação, são realmente realçadores de sensações e sentidos, desde transformar as palavras em opinião à imaginação. Criar imagens através das palavras. Sobretudo, há uma certa dificuldade no cinema que o impulsiona em criar significados através das imagens. Comunicar por imagens. Há uma sensibilidade intrínseca nessa forma de comunicação. Me sinto no dever de ressaltar a mim mesmo como o cinema é algo definitivo para a sensibilidade de interpretação e de profundidade aos sensores cognitivos. A formação da interpretação não se vale de palavras. Ressaltamos nossa perspectiva à imagem, pois a proposta na transformação cinematográfica está muito mais ligada no que assemelha aos olhos do que qualquer palavra ou crônica possa definir. Poderemos pensar em cinema quando nos apaixonamos, mas não podemos nos apaixonar mais por outra coisa que não seja cinema. Ele é tudo que se encaixa numa perspectiva um pouco mais ampla do que palavras e explicações podem oferecer; e pode ir além do que você pensa em oferecer. Aprendi pelo Cinema que a arte de observar e refletir está direcionada à observar arte ao que se vê e se projeta através de você.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Quando se envelhece por dentro

Acordei com um gosto pegajoso e quente de sangue na boca. Mais gosto de ferrugem do que sangue, porém, mais doce do que ferro enferrujado. Não sei se estou apodrecendo por dentro como o ferro, sobretudo, ninguém precisa ser um bom entendedor da vida pra ver através desses meus olhos fundos cercados por uma olheira profunda e estável que tenho chorado demais nas últimas semanas. Confesso que o gosto não é tão ruim quanto costuma ser quando acordo pela manhã. O gosto é menos putrificado e mais ácido. Não me importo com a acidez. Ela é o de menos. Parecia que eu chupava uma pedra enquanto dormia, depois a engolia e ela dilacerava toda a minha garganta enquanto descia. Deus, que sonho dos infernos! Não me lembro de nada, mas a minha memória está latejando como se eu tivesse sido espancado a cada hora de sono. Ao menos levei no máximo uns quatro socos enquanto dormia; talvez tenha sido a parte boa de ter dormido tão pouco. Sempre tento me manter otimista mesmo na pior das hipóteses. Acordei nocauteado por memórias infernais. Disposto a largar tudo por nada. É preferível ter nada quando não se tem escolha. Eu me lembro de uma coisa:  você dizia pra eu me levantar. Isso me motivava mais e você dizia "levanta, eu quero te acertar em cheio dessa vez. Não se manterá estável comigo enquanto puder se levantar com os próprios pés." E eu pensei que estivesse brincando, que fosse algum tipo daquelas brincadeiras sem graça que volta e meia quando eu tô viajando levo um tapa no ouvido. Pensei que fosse passageiro. Não é legal, mas não chega a ser imperdoável. É meio incompreensível pra mim essa tua crueldade em sentir prazer ao me ver sangrar. Enquanto tudo que eu pedia era amor. Não entendo o que eu fiz pra você continuar me levantando e me acertando com tudo bem no meio daquela linha na face que separa o nariz da boca. Sempre pega no nariz, merda. Não entendo por qual motivo ri disso. O fato é que não é engraçado. Nas primeiras vezes você releva e pensa que é fase, que mulher é tudo igual e que logo eu te faço ver que o amor não precisa machucar dessa forma. Eu também sei que o amor não é tudo isso que você diz, ele é tão banal quanto o soco que eu levo quando você pensa que faço pouco caso do teu sorriso. Sei que já estou velho e que você é bem mais nova. Mas a dor de envelhecer não faz amenizar a dor de carregar você nas costas, e você ainda espera que eu mude a sua vida. Que eu te prove que as cores do pôr do sol são feitas pelo mesmo sol que você reclama o dia todo enquanto mete a cabeça pra fora de casa às onze e meia da manhã. Sei que sou extremamente rabugento quando você sai com as amigas e nem me avisa, mas que diabos de homem eu seria se não ficasse puto da vida?! E sempre que te convido pra sair pra dançar como nos velhos tempos, (eu sei que não danço mas faço por amor e por amar te ver dançar) você diz que a dor de cabeça já consumiu todo o seu corpo. Tento pensar que não é pessoal há uns 30 anos. Droga. Em pensar que fazem 33 anos e meio que eu digo o quanto você é linda e gostosa quando acorda, mesmo não sendo tão sedutora e irresistível quanto há uns anos atrás. Você sabe que não te troco por nada. Eu já te amei tanto e agora tudo que eu sinto é a dor de ter que te carregar enquanto você soca as minhas costas para eu ir mais depressa pra te reerguer quando estiver deprimida. E eu ainda tenho a audácia de perguntar quando é que você vai decidir dizer que me ama e a minha cabeça continua martelando que provavelmente vou ouvir isso quando estiver sem as pernas ou perder a audição. Não faz diferença, de qualquer forma já vou estar muito fodido pra correr atrás de você ou muito velho pra ouvir a tua voz. Bosta, já nem me lembro mais se fazem 19 ou 20 anos que venho dizendo que sou velho demais pra viver nesse lugar.